quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A capital das monstruosidades, por Voltaire Schilling

A revista Panorama Crítico foi  criada com o objetivo de criar, de modo indepentende, um espaço aberto ao debate crítico. Dentro desse objetivo, colocamos aqui o texto de Voltaire Shilling na íntegra, publicado no último dia 25 de outubro e debatido na rádio hoje (dia 28) Gauchá FM, com os mais diversos profissionais e pensadores que atuam na cultura. Convidamos a todos (que já tenham lido o texto, assim como aqueles que não tenham lido ainda) os leitores da revista e do blog a realizarem seus comentários sobre o texto como forma de enriquecer e pensar sobre as aberturas que este texto polêmico gerou nos últimos dias.


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A capital das monstruosidades, por Voltaire Schilling*

Desde que Marcel Duchamp, um ex-artista cubista, francês de nascimento que escolheu os Estados Unidos como residência, mandou um urinol para ser exposto numa galeria de Nova York e, quase em seguida, em 1915, montou uma roda de bicicleta equilibrada sobre um pequeno banco e a fez passar por obra de arte, abriu-se a Caixa de Pandora dos horrores estéticos que a partir de então invadiram o cenário das exposições de arte.
Para acentuar ainda mais o seu deboche para com o que até então se entendia como arte, Duchamp, um pândego, um moleque crescido, pintou um belo bigode numa imagem da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ícone da pintura ocidental. Como ele não foi confinado num manicômio nem encarcerado por ofensas ao patrimônio estético (interessante observar que nunca o Direito Penal preocupou-se em classificar como crime hediondo quem de propósito fabricasse a feiura!), parte da vanguarda artística ocidental tomou-o como um profeta dos novos tempos. Estabeleceu-se então um deus nos acuda.
Todavia, o que particularmente nos chama a atenção como cidadãos desta nossa capital, que mais uma vez se vê intimidada pelo flagelo de uma nova “instalação”, é a notável concentração de “esculturas” e “monumentos” absolutamente espantosos. Um pior do que o outro.
Nosso calvário começa por aquela mandada erguer pelos burgueses do bairro Moinhos de Vento para celebrar sua vitória em 1964 que se encontra no Parcão (homenagem ao marechal Castello Branco, mas que também pode referir-se ao desembarque de um extraterrestre), chegando ao hediondo “timão” situado na rótula que antecede o museu Iberê Camargo.
Aliás, o primeiro “timão”, que parecia ter esterco como matéria original da sua composição, foi destruído pelos vileiros do Morro Santa Tereza, certamente indignados em terem-no nas vizinhanças (sofriam de uma injusta punição, além da pobreza tinham que encarar diariamente o exemplo da medonhice).
Este colar sem fim de mau gosto que nos assola ainda é composto pelo “cuiódromo”, encravado na rótula da Praça da Harmonia (obra que por igual pode ser entendida como a exaltação de um superúbere de uma vaca premiada), e por um tarugo de ferro enferrujado que adentra o Rio Guaíba nas proximidades da Usina do Gasômetro e que se intitula, pasmem, Olhos Atentos.
Nem os que foram perseguidos pelo regime militar escaparam destas maldades estéticas. O “monumento” que os lembra, erigido no Parque Marinha do Brasil, nos faz supor que eles continuarão atormentados ainda por muito tempo mais.
A gota d’água derradeira destas perversidades que acometem contra nós, pobres porto-alegrenses, foi a inauguração recente da Casa Monstro, situada na Rua dos Andradas. Pelo menos o autor, um jovem paulista, enfim alguém sincero no ramo, não a escondeu atrás de um título esotérico ou poético: é monstruosa, sim!
Trata-se da reprodução de um tumor que, inchado, é expelido pelas aberturas da construção e vem se mostrar aos olhos dos passantes, tal como se fora um abdômen de um canceroso recém aberto pelo bisturi de um cirurgião. Como se vê, uma maravilha!
Minha interrogação, depois de passar rapidamente os olhos sobre este vale de horrores que nos circunda, é por que Porto Alegre, cidade aprazível, moderna, povoada por gente simpática, habitada pelas mulheres mais belas do país e que abrigou artistas como Vasco Prado, Xico Stockinger e Danúbio Gonçalves, termina por excitar o pior lado de muitos que por aqui vêm expor?
Dizem-me que eles deixam estas abominações como doação (por não encontrarem compradores e não quererem arcar com o translado) e a infeliz prefeitura, constrangida, não tem como lhes dizer não.
Faço desde já um apelo ao secretário municipal da Cultura, Sergius Gonzaga, se este ano tal ameaça se repetir, mobilize-se. Levante recursos, promova uma ação entre os amigos da cidade para despachar tais coisas para qualquer outro lugar. Senão, peça socorro à ONU. Porto Alegre, aliviada, lhe será eternamente agradecida.

Jornal Zero Hora, Porto Alegre, RS - 25 de Outubro de 2009

* Nascido em 1944, é professor de História e Mestrando na UFRGS, responsável pelo Projeto Cultural do Curso Universitário. Escreveu 8 livros (*) e mais de 40 polígrafos, a maioria sobre História e História das Idéias Políticas. É professor do Curso de Jornalismo Aplicado da RBS-RS e palestrante da AJURIS-RS. Fez o Curso de Língua e Cultura alemã em Berlim em 1986, onde foi palestrante na Universidade Livre. Representou o Brasil na Feira Internacional do Livro de Jerusalém, em 1991. É articulista da Zero Hora-RS na página de “Opinião”, colaborador do Caderno de Cultura ZH e, também, foi comentarista de assuntos internacionais, culturais e políticos do programa “Câmera 2” na TV Guaíba-RS.

3 comentários:

  1. O texto é sem dúvida limitado e apresenta uma leitura preconceituosa da prática artística. Desconhece o que foi feito nos últimos quarenta anos. Representa uma fatia conservadora do Rio Grande do Sul, para a qual o mundo é um conjunto harmônico e fechado.

    O trabalho de Henrique Oliveira, o qual tive ocasião de conhecer durante a curadoria da Fiat Mostra Brasil, me parece muito mais interessante na rua e em Porto Alegre que se ficasse confinado nas quatro paredes de um galeria em São Paulo. Na rua ele tenciona o tecido urbano provocando reações. Este artista coloca questões muito pertinentes acerca do excesso, do acúmulo e das formas e cores do mundo. Sua prática é bastante inquietante, seus gestos selecionam e organizam os resíduos de mundo, os desfolhamentos de tapumes urbanos com os quais constrói formas e excrescências urbanas. Seu trabalho é associado às preocupações tanto da pintura quanto da escultura e adquire na cidade de porto Alegre um lugar crítico importante.

    Maria Ivone dos Santos

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  2. Uma discussão sobre arte pública seria extrair a limonada de um limão chamado Voltaire. O debate sobre a forma de ocupação dos espaços públicos, e não sobre o prof., seria manter o foco no caminho certo, para aproveitar a situação, trazendo ao grande público mais informação. Se essa discussão tomar o rumo certo todos sairemos ganhando.

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  3. Marcel Duchamp libertou a arte da mãos, abrindo o leque de possibilidades para um exercício mais crítico, intelectualizado.

    O movimento histórico conhecido como Conceitualismo teve seu apogeu nos anos 60-70.

    Nos anos 80, talvez um pouco cansados de tantos conceitos, os artistas retomaram os procedimentos manuais e a produção de obras.

    Dos anos 90 em diante, em todo o mundo, a arte é um campo de grande diversidade, onde diferentes correntes convivem e tem seu espaço e seu público.

    No Brasil de maneira geral ocultasse os anos 80, e acreditasse que as correntes conceituais são as únicas aceitáveis, realmente, em sintonia com a idéia de uma evolução interna da arte.

    O fazer é desprezado por essa elite "intelectualizada" brasileira, por ser considerada "coisa do passado", enquanto nas nações onde o conceitualismo surgiu, tanto o fazer quanto o pensar são valores correntes.

    D. H.

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